07 junho, 2006

Ali Farka Touré - À Espera de «Savane» (parte 2)


Continuando a recuperação de textos antigos sobre Ali Farka Touré, cujo novo álbum, «Savane», é editado no dia 17 de Julho, aqui fica mais um texto, este a propósito de «Niafunké» (e de outros álbuns de música africana). Apareceu, sem título, na secção «world extra», do BLITZ.

WORLD EXTRA
(publicado originalmente no ano 2000)

Quando Don Johanson, um respeitadíssimo arqueólogo, descobriu o esqueleto mais completo de um Australopithecus Afarensis, em Hadar, na Etiópia, estava a ouvir no seu gravador «Lucy In The Sky With Diamonds», dos Beatles, uma das suas canções preferidas. O esqueleto, do sexo feminino -- e, na altura, o hominídeo mais antigo que já se tinha encontrado --, foi por isso baptizado com o nome de Lucy e tornou-se uma vedeta entre os estudantes de História de todo o mundo.

A ironia da situação estava em que, procurando as origens da espécie humana em África -- onde elas estão, de facto, até prova em contrário --, se estava ao mesmo tempo a ouvir uma das melhores criações artísticas do século XX, uma música feita por brancos (a pop e o rock'n'roll) mas completamente devedora da música negra (os blues, os rhythm'n'blues, o jazz...). Como se um fio invisível unisse as várias etapas da pilhagem a que o continente africano foi sujeito ao longo dos séculos (dos milénios?) por povos exteriores. Dos escravos que foram de Angola, Guiné, Costa do Marfim, para o Brasil, levados pelos portugueses, ou das relíquias faraónicas que foram roubadas pelos franceses, até à música que saiu de África para Cuba, Brasil ou Estados Unidos para quase nunca mais voltar.

Este texto fala de pilhagens, mas também de reapropriações e de viagens de ida e volta, sabe-se lá de onde para onde, de quem para quem (o genial guitarrista Ali Farka Touré e a colaboração dos Masters Musicians of Jajouka com Talvin Singh). E também de alguma música que esteve escondida durante décadas, como é o caso das reedições de Fela Kuti, da música da cabo-verdiana Nácia Gomi ou da colecção «African Renaissance», com gravações dos arquivos da rádio oficial sul-africana. Os discos de que aqui se fala - e que podem ser descobertos facilmente em qualquer boa discoteca - são importantes, não como documentos (históricos ou outros) mas como obras de arte absolutamente acabadas, passe o quase-paternalismo e quase neo-colonialismo da frase. São assim porque o são. Só isso. Breve resenha, em jeito de ficha analítica de arqueólogo amador.

Ali Farka Touré - «Niafunké» (World Circuit/Megamúsica, 1999). Origem: Mali. Ali Farka Touré é um guitarrista de blues. Dito isto assim, de uma forma crua, parece não ter importância. Há guitarristas de blues em todo o lado. Do Mississippi a França, guitarristas de blues é o que não falta. Mas Touré é diferente de todos os outros. Ele toca e só por tocar duas ou três frases nós apercebemo-nos imediatamente de onde vem aquela música que pensávamos durante muitos anos vir dos negros da América. Vem deles, é claro, mas vem principalmente dali, do coração de África. Touré ouviu os grandes mestres dos blues (John Lee Hooker é muitas vezes apontado como uma influência) mas também ouviu muita da música que se faz na zona sub-sahariana em que nasceu. E a mistura das duas culturas é espantosa. Como se víssemos duas verdades parciais mas já estivéssemos a olhar para a verdade absoluta. Uma verdade simples: os blues nasceram em África, sem dúvida. «Niafunké» - mais rude e mais puro que o álbum gravado com Ry Cooder, o igualmente genial (embora diferente) «Talking Timbuktu» - é bem prova disso. E se o início do último tema faz lembrar os Pink Floyd de «Wish You Were Here» isso é só um gesto de ladroagem (consciente?, duvido) que é, no fundo, um acto de justiça poética em relação à contínua prática de gatunagem da música ocidental.

Master Musicians of Jajouka - «Master Musicians of Jajouka - Featuring Bachir Attar», produzido por Talvin Singh (por enquanto só um CD-sampler, com quatro temas e duas entrevistas; Point Music/Universal, 2000). Origem: Marrocos. Novo álbum de um colectivo lendário na cena «world music». Descobertos, digamos assim, por Brian Jones - o igualmente mítico guitarrista dos Rolling Stones - em 1968, com quem gravou o álbum «Brian Jones presents The Pipes of Pan at Jajouka» (a edição original, em LP, não tinha título mas foi assim designada na reedição em CD), o disco obrigou o Ocidente a conhecer a música do norte de África, as suas percussões hipnóticas, as suas vozes melismáticas, as suas gaitas afinadas nos limites dos agudos. A vontade de psicadelismo, de algum misticismo (movido a drogas várias, é verdade) e de transe levou Brian Jones para Marrocos; como outros (George Harrison e, por arrasto, os outros Beatles, foram para a Índia). O curioso é que, trinta anos depois, há um indiano radicado em Londres a produzir um disco do mesmo grupo marroquino. O novo álbum dos Masters Musicians of Jajouka tem a supervisão de Talvin Singh (uma das figuras de proa da frente asiática em Inglaterra, juntamente com os Asian Dub Foundation ou os Transglobal Underground). E mostra a mesma música (com o gaiteiro Bachir Attar como solista) de antigamente, mas com o acrescento (dado por Singh) de modernos ritmos de música de dança. Os puristas podem torcer o nariz, mas os frequentadores de festas bailantes, nomeadamente as de trance psicadélico, vão-lhe chamar um figo. Segundo Talvin Singh, a música de Marrocos e da Índia, apesar dos milhares de quilómetros de distância entre os dois países, tem uma raiz comum, a música que, da Pérsia, seguiu para outras partes do mundo (e a influência da religião muçulmana também não deve ser alheia ao facto, acrescento). Diáspora, separação, descoberta, viagem. A música sempre viveu assim, da liberdade de ir de um lado para o outro...

Fela Kuti - «King of Afrobeat - The Anthology» (caixa de três CDs Barclay/Universal, 2000). Origem: Nigéria. Fela Anikolapu (ou Ransome) Kuti foi um visionário da música africana e, se se ouvir com atenção estes três discos (e os álbuns completos que estão agora a ser vendidos na colecção «Fela - The Authentic Collection», que reúne dois álbuns num CD) de muita da música que se fez depois dele. Estudou música em Londres, no Trinity College, viveu nos Estados Unidos a euforia do rock e do funk, para além de ter sido atingido em cheio pelas ideias do Black Power (o que reforçou ainda mais os seus ideais políticos já bem firmes desde a sua juventude). Quando voltou à Nigéria, na viragem dos anos 60 para os anos 70, começou a criar, com o seu grupo, Africa '70, as raízes daquilo que ficou conhecido como afro-beat. Baseados no jazz, no funk, no rock, no psicadelismo revisto por Sun Ra, e com uma forte intervenção política e social, os temas de Fela Kuti caracterizavam-se por longas introduções instrumentais, com a voz a aparecer só depois de estar muito bem definida a base rítmica e melódica, muito longe da obrigatoriedade de um refrão pop antes da chegada sequer ao primeiro minuto. Uma voz masculina com marcantes coros de vozes femininas e uma base instrumental «ocidental» - guitarras eléctricas, baixo, bateria, teclas, saxofone (e em quase todos estes instrumentos Fela era perito), ao lado de maracas e congas. As suas letras - cantadas em várias línguas, numa tentativa de pan-africanismo - falavam de pobreza, de corrupção, de guerra. Mas também de revolta e de esperança. Fundou uma «república» só sua, com as suas inúmeras esposas. Foi preso e torturado pelo governo nigeriano em 1984. A sua mãe foi assassinada pelos soldados que o perseguiam. Morreu de SIDA em 1997. Isto é curto para retratar a vida de Fela Kuti. Como é curto dizer que a sua música, influenciada-pela-música-ocidental-influenciada-pela-música-africana, abriu depois caminho a coisas tão diferentes como o disco-sound ou o drum'n'bass, o rap (ele que, por sua vez, tinha ficado impressionado com a obra dos Last Poets) ou grupos como os Talking Heads, os Material ou os King Crimson de inícios dos anos 80. Pulsação, encanto, fusão, futuro, liberdade, negritude.

Nácia Gomi -- «Nácia Gomi Cu Sê Mocinhos» (CD Sons D'África, 2000). Origem: Cabo Verde. Nácia Gomi é uma senhora de 75 anos que só agora está a ser revelada ao mundo. Compositora da maior parte dos temas que canta, Nhá Nácia canta o finaçon, feito de voz e batuques, uma música que remete tanto para as polifonias sul-africanas como para o griot da África Central como para os cantos melismáticos do norte de África, e, por muito estranho que possa parecer, para alguns cânticos dos índios norte-americanos. Diz ela que nunca dançou um alegre funaná. Compreende-se: o finaçon é uma música profundamente triste, feita de ladaínhas hipnóticas, circulares e telúricas que aceleram para um transe final. Deus vive ali perto, apesar da aparência desolada da paisagem e da carga histórica que rodeia o sítio em que Nácia vive, o Tarrafal.

Vários - «African Renaissance» (colecção de CDs Eagle Records/Música Alternativa, 2000). Origem: África do Sul. Quarenta anos depois de terem sido efectuadas as gravações - e com o fim do apartheid - estão agora disponíveis as recolhas feitas por técnicos e produtores da rádio sul-africana (South African Broadcasting Corporation). É música perdida nos tempos (a maior parte dos músicos presentes nestes CDs nunca teve qualquer tipo de reconhecimento público sob o regime bóer) e uma enorme miríade de estilos e géneros. Gravados nos anos 50, estes são temas protagonizados por zulus, vendas, tswanas, xhosas, swazis... E aqui podem-se ouvir cantos polifónicos zulu, temas devedores do rock'n'roll e do swing (estes temas um desenvolvimento do género local marabi, nascido nos anos 20 e que misturava as big-bands do jazz com as músicas locais), temas próximos dos merengues e dos sembas angolanos. Há canções gospel mas com os gritos femininos hiper-agudos que são mais conhecidos dos cantares berberes, do lado oposto (a norte) do continente; canções parecidas com o «Lion Sleeps Tonight» (talvez o tema sul-africano mais famoso de que os americanos se apropriaram); delírios rítmicos de percussões em explosão contínua. Diamantes em estado bruto.

É conhecida a romaria que bateristas e percussionistas ocidentais fizeram até África, à procura do ritmo: Ginger Baker, que gravou em 1971 com Fela Kuti. E, depois, Stewart Copeland (dos Police) ou Mickey Hart (dos Grateful Dead), para já não falar nos bateristas de jazz. Mas se calhar está na altura de guitarristas, baixistas, teclistas, cantores, saxofonistas, etc., seguirem o mesmo caminho. Lucy já não é o mais antigo hominídeo descoberto. Os diamantes financiam guerras no continente. Mas ao céu ainda chegam as vozes de África inteira.

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