12 junho, 2006

Gaiteiros de Lisboa - Sátiros à Solta


O novo álbum dos Gaiteiros de Lisboa, «Sátiro», teve no Natal uma edição limitada (dois mil exemplares) oferecida a clientes e trabalhadores da ANA. Brevemente o álbum estará disponível para o público em geral através da SonyBMG portuguesa. Aqui fica uma curta crítica ao álbum e a recordação de uma entrevista dada por Carlos Guerreiro ao BLITZ, em 2004, publicada na secção «52 Personalidades da Música Portuguesa».

Gaiteiros de Lisboa
«Sátiro»
SonyBMG

Quem porventura esperava um quinto álbum dos Gaiteiros de Lisboa acomodado e preguiçoso - afinal, já parecia que tudo tinha sido re-inventado (e bem) pelo grupo -, deve esperar, pelo contrário, um álbum cheio de surpresas, boas ideias e passos em frente. Um álbum variadíssimo, inventivo, com o senão (pelo menos na edição da ANA) de um alinhamento que poderia ser bastante melhor. Um álbum em que se encontram temas de inspiração arábica-medieval («O Fim da Picada») ou devedores de José Afonso («Nem Fraco Nem Forte»), um mergulho de cabeça na tradição-mais-tradição-não-há («Pracá-dos-Montes»), uma semi-rockalhada com a cadência de «Roadhouse Blues», dos Doors, com o violino de Manuel Rocha, da Brigada Victor Jara, a ajudar («Comprei Uma Capa Chilrada»), um extraordinário devaneio rítmico e melódico («Haja Pão»), uma versão de «Movimento Perpétuo», de Carlos Paredes, entre Bach, a Penguin Cafe Orchestra e a música de Michael Nyman para filmes de Peter Greenaway, outra, lindíssima, do tradicional alentejano «Se Fores ao Mar Pescar», e outras, divertidíssimas, da «Chamarrita do Pico» e d'«As Freiras de Santa Clara» (esta com picante...). E ainda um fado inusitado e absolutamente surpreendente feito de flautas e da voz de Mafalda Arnauth. (8/10)


CARLOS GUERREIRO
ELOGIO DO ARTESÃO

Carlos Manuel Ramos Guerreiro nasce em Lisboa a 26 de Julho de 1954. Guerreiro diz que não tem grandes ídolos, apesar de ter referências, e nesta entrevista destaca «os quatro santinhos do meu altar: Zeca Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto», que determinaram a sua atitude musical e social.

Há uma canção de Sérgio Godinho que se poderia aplicar na perfeição a Carlos Guerreiro, «O Homem dos Sete Instrumentos», mas há outra, também de Godinho, que é - mesmo! - a cara de Guerreiro: «Elogio do Artesão». Multi-instrumentista, cantor, compositor, escultor, inventor de instrumentos, professor... Carlos Guerreiro é um homem do Renascimento que, segundo confessa já na parte final desta entrevista, levou uma vida, «eu e os outros membros do grupo», diz, a preparar-se para a sua grande criação musical, os Gaiteiros de Lisboa, banda-charneira da música portuguesa de inspiração tradicional mas que, da tradição, salta depois para a sua reinvenção e recriação absolutas.

E essa «vida» começa em Almada, talvez aos 12 anos, quando está a tocar num «xilofone deprimente» e pede ao pai que lhe ofereça uma viola como prenda. A viola chega, mas quando tem más notas, o pai tira-lhe as cordas da viola, como castigo, para não tocar. Anos depois, com 15 anos Guerreiro começa a compor, influenciado pelos artistas do «movimento baladeiro» que via no programa de televisão «Zip-Zip». E é proibido de cantar no liceu porque, para além das suas músicas, também tocava «coisas do Zeca Afonso e outras canções contra o Governo». Isto passa-se numa altura em que «fugir à polícia era uma espécie de desporto radical». Quando começa a compor, diz Guerreiro, «plagiava os meus ídolos todos, mas plagiava-os de uma maneira tão inocente que dá vontade de rir... Plagiava o Zeca, plagiava o José Barata Moura, o Manuel Freire, plagiava-os a todos». Na adolescência, Guerreiro ainda passa por um grupo de baile do Feijó, os Scorpios, mas detestava aquilo, «era uma seca estar ali a tocar só para servir um ritual de acasalamento, embora não tenha nada contra os rituais de acasalamento (risos)», e por um grupo rock, formado no liceu, com um nome compridíssimo: Eighteen Fifty-Five Pop Psychadelic All Dimension and Revolution Band (!!!).

Em 1975, Carlos Guerreiro começa a cantar e a tocar com o GAC - Grupo de Acção Cultural/Vozes na Luta, grupo pioneiro de recolha e recuperação do cancioneiro tradicional português, onde Guerreiro encontra, entre muitos outros, Rui Vaz - agora seu companheiro nos Gaiteiros de Lisboa - e José Mário Branco. Branco, outro dos «santinhos» do seu altar e o primeiro com quem trabalhou. «Tive a sorte de trabalhar com todos os meus ídolos: o Zé Mário, o Sérgio, o Zeca e o Fausto». O GAC, que tinha nascido no ano anterior, é em 75 liderado por José Mário Branco (depois de anos de exílio e gravações em França), e a escolha dos seus membros recai em parte do Coro de Almada, de que Guerreiro fazia parte, e noutros coros. Carlos Guerreiro pertence ao GAC durante toda a existência do grupo, participando em álbuns seminais como «A Cantiga É Uma Arma» ou «Pois Canté!». O percurso do GAC - que marcou fortemente esse período musical e politicamente e foi, também, o germe de muitos grupos de música popular e tradicional que viriam a formar-se depois - termina em 1978. Por essa altura, Guerreiro tinha terminado o Curso de Educação Pela Arte, do Conservatório de Lisboa, e continua a tocar - nesse ano acompanha José Afonso (outro dos seus ídolos) em concertos e, depois, toca com a cantora Shila (Sheila Charlesworth, ex-mulher de Sérgio Godinho), participa em discos de Júlio Pereira e toca com Fausto, em concertos em Espanha e Portugal.

Do seu trabalho com os «santinhos» - Sérgio Godinho viria depois -, Guerreiro diz que «foram eles que me formaram. Foi com o Zeca que eu percebi que a música portuguesa poderia ter qualidade e comecei a perceber que a música portuguesa poderia ser boa e má. Depois, quando comecei a ouvir José Mário Branco, Sérgio Godinho e Fausto, o círculo fechou-se». E a música de Carlos Guerreiro, como criador, deve a estes nomes muito mais do que se poderia pensar. Como ele próprio admite: «na música, a recriação é um plágio criativo. Ao longo da minha vida tenho roubado ideias a uns ou a outros, mas aprendi a disfarçá-lo bem (risos)».

Durante alguns anos, Carlos Guerreiro dá aulas nos Açores. E em Novembro de 1984 - o mês de nascimento do BLITZ -, Guerreiro estava «a mudar as fraldas» ao seu primeiro filho, que nasceu alguns meses antes. E acrescenta: «Curiosamente, nesse ano, a minha vida mudou substancialmente porque estava a voltar dos Açores - onde estive a dar aulas - e a pensar no que iria fazer no futuro. E estava a tocar com Fausto e Sérgio Godinho. Se calhar cortei tardiamente com a adolescência - já tinha 30 anos (risos) - e comecei a ver a vida de uma forma simultaneamente mais adulta e mais livre». Com Fausto toca em vários espectáculos e participa no «concerto que me deu mais gozo até hoje, no Coliseu dos Recreios». E com Sérgio Godinho trabalha durante 5 anos.

Depois dos anos passados com Godinho, Guerreiro vai estudar para a Fundação Ricardo Espírito Santo, devido ao seu amor por outras actividades: a escultura em madeira e a construção de instrumentos musicais, uma paixão que tinha começado nos Açores, «onde tive tempo para falar com construtores e para fazer instrumentos: foi um período da minha vida muito rico e tranquilo». Mas é no início dos anos 90, quando Guerreiro está convencido que a sua vida passará a ser dedicada ao trabalho de «artesão» que a música volta a pôr-se no seu caminho: é convidado para tocar com os Sétima Legião - onde conhece Paulo Marinho, outro dos seus companheiros nos Gaiteiros de Lisboa - num concerto especial e participa nas gravações de «Auto da Pimenta», de Rui Veloso. E é Veloso que o convida a voltar aos concertos, integrado no seu grupo: «nem queria acreditar que ia fazer parte de uma banda rock! Com o Rui Veloso tocava tudo: sanfona, guitarra, teclados MIDI... Estava convencido que ia tocar essencialmente coisas do "Auto da Pimenta", mas acabámos a tocar novamente muitas coisas de um álbum dele de que eu gosto muito, o "Mingos e Os Samurais"».

E depois de muitos anos a tocar a música dos - e com os - outros, Carlos Guerreiro lança-se, em 1991, à grande aventura musical da sua vida, os Gaiteiros de Lisboa, ao lado de Rui Vaz, José Manuel David, José Salgueiro, Paulo Marinho e, numa primeira fase, José Mário Branco (que com eles grava o primeiro álbum, Invasões Bárbaras, de 1995). «O que se passou comigo também se passou com os outros músicos dos Gaiteiros. E foi nos Gaiteiros que avançámos para criações nossas. Nos Gaiteiros senti que tinha terreno livre para fazer tudo o que me apetecesse. E o mesmo sentiram o Rui Vaz, o José Manuel David, etc... Foi uma confluência de vontades, com plena liberdade. Partimos do nosso gosto pela estranheza das coisas... e se um dizia mata, o outro dizia esfola. E ainda estamos nessa fase; aliás, os Gaiteiros só têm sentido se continuarem assim. No dia em que os Gaiteiros estagnarem, morrem». Nos Gaiteiros - que compõem originais mas também recriam, refazem e «destroem» temas tradicionais -, Guerreiro teve também espaço para mostrar ao mundo os estranhos instrumentos que constrói na sua oficina - desde sanfonas a coisas como os túbaros de Orpheu ou a cabeçadecompressorofone. E à sua actividade educativa junto de crianças - nos últimos anos, também tem dado aulas no Centro de Paralisia Cerebral da Gulbenkian - foi buscar romances e lenga-lengas. Isto, para além da prática de canto coral, das recolhas de Michel Giacometti e outros, do gosto comum pelas gaitas-de-foles, das suas referências já assumidas e de muitas outras que foi «acumulando» ao longo dos anos.

Com os Gaiteiros de Lisboa, Guerreiro gravou os álbuns «Invasões Bárbaras», «Bocas do Inferno» (1997), «Dançachamas» (ao vivo, 2000) e «Macaréu» (2002), para além de dois originais editados na colectânea «Novas Vos Trago» (1998) e da sua participação - a solo ou como Gaiteiro - em discos e concertos de variadíssimos projectos. Do percurso com os Gaiteiros, Guerreiro destaca como momentos mais significativos a gravação do disco «Dançachamas», o Prémio José Afonso atribuído aos Gaiteiros, as participações com outros músicos e grupos (na Galiza, na Córsega, no Alentejo, com os Vozes da Rádio...), um concerto em Itália com as pessoas a atirar serpentinas e rebuçados para o palco ou o surpreendente concerto na Tenda Raízes do Rock In Rio-Lisboa, no dia do heavy-metal no palco principal, com dezenas de rapazes e raparigas ao pulo e ao mosh em frente ao palco em que os Gaiteiros tocavam - «quando fui para lá, pensei "que chatice, ninguém nos vai ligar nenhuma". E depois senti que tínhamos lugar no meio desta história toda».

Como consequência, lógica, da sua importância como criadores de música portuguesa - ou recriadores de música tradicional e popular portuguesa -, os Gaiteiros têm influenciado inúmeros novos grupos que também vão à música tradicional sem nela se deter ou deixar atolar. Guerreiro acha que isso é lógico: «no GAC nós fomos pioneiros na utilização de recolhas e na sua integração num grupo urbano. Mas depois vieram muitos outros grupos... Mas começámos tarde - em França e na Irlanda isso já estava feito muitos anos antes... Há grupos novos que nos tomam como referência mas que, mesmo que nós não existíssemos, existiriam na mesma. Mas chateia-me que, às vezes e nalguns casos, não tenha uma maior profundidade a nível etnográfico e seja feita de coisas que eles apanham um bocado no ar».

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