18 julho, 2006

A Crise no Médio Oriente... e os Asian Dub Foundation


Tenho um amigo judeu. Tenho outro amigo muçulmano. Ambos portugueses, ambos fotógrafos, ambos com um passado profissional que se cruzou durante alguns anos com o meu. E ambos se converteram às respectivas religiões depois dos 30 anos (quer dizer, o meu amigo judeu já nasceu judeu - a família fugiu da Alemanha, para se refugiar em Portugal, durante a II Guerra Mundial -, mas só aderiu de alma e coração à sua religião, digamos, de sangue, três décadas depois de ter nascido). Gosto muito dos dois. E respeito e admiro as suas opções, tomadas adulta, ponderada e conscientemente...

Hoje, no jornal «Público» vem uma fotografia (de Sebastian Scheiner, da Associated Press) que mostra uma rapariguinha (14 anos? 15 anos?) israelita loira, muito bonita, a escrever mensagens de ódio em bombas que vão ser largadas sobre o Líbano ou a Faixa de Gaza e, eventualmente, matar pessoas (e, eventualmente, matar pessoas inocentes). O mesmo ódio que se sente, do outro lado, nos bombistas suicidas palestinianos que posam para as fotografias vestidos e armados pouco antes de se fazerem explodir (e, eventualmente, matar pessoas inocentes) nos autocarros, nos mercados e nas ruas de Israel. Um ódio que não há meio de acabar...

No interminável conflito israelo-palestiniano (ou, em termos mais alargados, israelo-árabe) há muitas coisas que me chocam e entristecem. Choca-me que os dirigentes de um povo várias vezes perseguido ao longo da História (escravizado pelos faraós, subjugado pelo Império Romano, perseguido pela Inquisição portuguesa e espanhola, vítima de um genocídio infame por parte de Hitler...) sejam agora os carrascos de um outro povo, o palestiniano, matando-o, condenando-o à fome e à sede, impedindo a entrada de medicamentos no seu território... Choca-me que, do lado palestiniano, anos e anos de esforços diplomáticos tenham sido deitados para o lixo por parte das facções mais radicais. Choca-me e entristece-me que sejam algumas elites minoritárias dos dois lados a querer, promover e incentivar a continuação da guerra. Choca-me que a questão palestiniana (por muito justas que sejam as reivindicações dos palestinianos ou exactamente por essa mesma justeza) seja usada, com má fé, por muitos radicais islâmicos para justificar o terrorismo internacional (usando como bandeira os corpos dos palestinianos mortos) e os atentados a Nova Iorque, Londres, Madrid ou Bombaim.

Choca-me e entristece-me que, em nome da defesa «ocidental» contra o terrorismo, os dirigentes de um país chamado Estados Unidos da América se sintam no direito de invadir países (como o Iraque), manter prisões que violam os Direitos Humanos (como Guantanamo) e usar países da Europa para fins ilegais (como o transporte de prisioneiros a cargo da CIA). Choca-me que os militares desse país, a mando dos seus chefes, matem milhares de inocentes, torturem, destruam museus e casas e mesquitas. Choca-me ver os pais desses militares a chorarem a morte dos filhos (desde o início da segunda guerra no Iraque já morreram mais de dois mil soldados norte-americanos nesse país). Choca-me que a maioria desses militares seja oriunda das classes baixas e de comunidades imigrantes nos Estados Unidos. Choca-me que os jornais e as televisões não falem dos milhares de jovens americanos que desertaram do exército, fugindo para o Canadá. Choca-me a proibição de filmar a chegada dos caixões dos militares mortos aos aeroportos de Nova Iorque, Chicago ou Los Angeles (e choca-me não pela «exibição da morte», mas pela justificação oficial da proibição: «a divulgação dessas imagens poderia desmoralizar os outros soldados» e a população norte-americana em geral). Choca-me que um alto responsável pelo governo norte-americano tenha interesses directos na exploração de petróleo no Iraque (ou na reconstrução de infraestruturas ou noutra actividade altamente lucrativa qualquer). Choca-me que a razão principal disto tudo seja o Dinheiro (o dinheiro gerado pela exploração do petróleo, pela venda de armas, pela venda, até, de matéria noticiosa nas grandes cadeias de televisão e nas revistas e jornais).

Choca-me que o presidente Bush se refira à actual situação no Médio Oriente como «aquela merda» (em conversa com Tony Blair, ontem). Choca-me que haja uns iluminados europeus e norte-americanos que se riem com as caricaturas de Maomé e de Alá, sem se aperceber que essas caricaturas são apenas o reflexo de uma eventual, putativa e duvidosa superioridade moral («olhem p'ra nós, tão democráticos e tão livres que até podemos achincalhar os outros e a sua religião») e não o exercício inteligente de um direito, o de criticar. Choca-me e entristece-me a falta de respeito - respeito no sentido antigo, respeito no sentido de respeitar diferenças, opiniões, ideologias, religiões, culturas... - entre todas as partes.

Há uma canção dos Klezmatics - um extraordinário grupo musical de judeus de Nova Iorque (na foto ao lado) - que diz assim: «I ain't afraid... I ain't afraid of your Yahweh, I ain't afraid of your Allah, I ain't afraid of your Jesus, I'm afraid of what you do in the name of your God». Os mesmos Klezmatics que, nos seus concertos, apelam ao fim do conflito israelo-árabe. Assim como em Israel há grupos musicais - os Bustan Abraham (que significa «Jardim de Abraão», porque tanto os árabes como os judeus descendem de Abraão, respectivamente através de Ismael e Isaac, seus filhos), os Sheva ou os Olive Leaves são apenas alguns exemplos - em que se juntam judeus e muçulmanos, em paz. A mesma paz que permitiu a judeus e muçulmanos (e ciganos) fugidos à Inquisição espanhola e portuguesa inventar o flamenco na Andaluzia; a mesma paz que permitiu que a música sefardita (de judeus em fuga por Marrocos, Argélia, Tunísia, Turquia, países muçulmanos em que tiveram abrigo e protecção...) tenha elementos ibéricos, judeus e árabes; a mesma paz que leva o rei de Marrocos, um país muçulmano, a visitar a sinagoga uma vez por ano. A mesma paz cantada pelo argelino e muçulmano Abderraamane Abdelli num concerto no Festival Islâmico de Mértola há três anos. E a mesma paz, ou desejo de paz, que leva o grupo rap israelita Hadag Nahash a cantar «One is the number of countries from the Jordan to the sea. Two is the number that one day there will be». Parece tão fácil e simples, não parece?...

Como complemento útil a este texto, deixo aqui a crítica do álbum «Tank» e a entrevista com os Asian Dub Foundation publicadas há pouco mais de um ano no BLITZ (entrevista, realizada antes dos ataques terroristas em Londres de há um ano, em que Pandit G coloca algumas questões pertinentes acerca do terrorismo, da questão islâmica e da guerra no Iraque).


ASIAN DUB FOUNDATION
«TANK»
Labels/EMI

Apesar das referências típicas dos Asian Dub Foundation - uma fusão de hip-hop, jungle, bhangra indiano, funk, guitarras rock e uma atitude devedora do punk... - continuarem bem presentes no novo álbum do grupo indo-britânico, «Tank», o som dos ADF está agora mais livre e aberto. No álbum há, por vezes, mais melodia nas vozes e há quase sempre um maior predomínio da electrónica - a presença de Ben Watkins (Juno Reactor) como produtor é uma das razões -, embora as guitarras eléctricas ainda por lá andem bem presentes (principalmente em ««Round Up», «Oil» ou «Take Back The Power»). E o jogo de vozes é agora poderosíssimo, com a aquisição de Ghetto Priest (vindo da escola anglo-jamaicana da On-U Sound), que agora se junta a MC.Spex. É ragga vs. hip-hop num ringue de luta livre. Elementos electro, música árabe, um imaginário punk-progressivo («Who Runs This Place»), sitars («Warring Dhol») e até regage/dub em estado quase puro («Tomorrow Begins Today») compõem o ramalhete musical.

E tudo isto servido por letras que estão cada vez mais intervenientes politicamente, com os ADF a apontarem o dedo (o do meio, talvez), ao cinismo do Ocidente (Estados Unidos, Inglaterra...), que lança as sementes da violência e do terrorismo noutros países, para depois ser vítima das tempestades que desencadeia. O tema-título, «Tank», é baseado numa canção infantil, mas com a letra transformada («we want your oil»), e noutras canções há letras como «We're the children of the CIA, we want somewhere new to play, better get right out of the way»; «looking for the Muslim bomb/looking for the Hindu bomb / still on the lookout for the suicide bomb». A luta continua. (8/10)



ENTREVISTA
A GUERRA (TALVEZ SEGUNDO WALT DISNEY)

«Tank», o novo álbum dos Asian Dub Foundation é mais um violento manifesto anti-guerra vindo do grupo euro-afro-indiano. Mas é também um passo em frente na busca de um qualquer bhangra-hip-hop-reggae. E com o terceiro elemento, o reggae, cada vez mais lá em cima. A entrevista com Pandit G, um dos fundadores do grupo.

Os Asian Dub Foundation têm, desde sempre, uma forte consciência social e política nas suas canções. No novo álbum, «Tank», a luta política continua. O que é mais importante nos ADF: a música ou a mensagem? A festa ou a luta?

As duas, na realidade. Mas não sei se o nosso trabalho é político, apenas reflectimos sobre o que nos rodeia e vai acontecendo no mundo: aquilo de que as pessoas falam, aquilo que nós vemos na televisão... Não estamos sozinhos nisto. Há bandas e artistas que não falam destes assuntos, mas há outros que sempre o fizeram. O Bob Marley, por exemplo, falava de temas semelhantes num ambiente de festa. Muitas bandas punk faziam o mesmo...

Falou em ambiente de festa...

Sim, porque isso também é muito importante. Todas as músicas que usamos na nossa música - seja o reggae, o electro, o hip-hop, o bhangra... - são músicas de festa, para dançar. Mas, pelo meio, nós transmitimos uma mensagem. Em Inglaterra há agoras muitas bandas de revivalismo dos anos 80, e essa época foi má em termos musicais, foi vazia, muito virada para a moda, o consumo, o dinheiro. O movimento neo-romântico (Duran Duran, Spandau Ballet, Classix Nouveaux, etc, etc...) foi péssimo. Nós somos afectados pela vida de todos-os-dias, a vida real, e as nossas canções são a nossa visão sobre isso. Não temos grandes manifestos políticos...

Mas então como explica temas como «Tank», «Who Runs The Place», «Oil» ou «The Round Up»?

«Tank» pode ser o tanque de gasolina do seu carro (risos). Mas, falando a sério, é evidente que há questões específicas do nosso tempo que nos afectam directamente como a Guerra no Iraque. A Inglaterra está envolvida nesse conflito e as pessoas não foram consultadas a propósito dessa matéria. E não há maneira de reagir a isso, se não através de canções ou filmes ou manifestações...

Acha que há algum tipo de falta de liberdade, actualmente, no Reino Unido?

Sim, sem dúvida. Vocês, em Portugal, têm bilhetes de identidade. Nós, em Inglaterra, recusámos os bilhetes de identidade a seguir à II Guerra Mundial porque esse tipo de cartão identificativo atentava contra as liberdades individuais das pessoas. Mas agora querem obrigar-nos a ter bilhetes de identidade, alegando que são necessários para controlar o terrorismo, a imigração, etc... Há um controlo cada vez mais massivo e prepotente do estado sobre as pessoas. Há, por exemplo, detenções sem julgamento. O Governo está a transmitir uma mensagem negativa, de medo. Não fala em termos melhores empregos ou melhores casas ou melhor saúde... É mais: «se não votarem em nós, o futuro será terrível!». É assustador.

Mas não era inevitável, devido às ligações com os Estados Unidos, a entrada do Reino Unido na Guerra do Iraque?

Não, porque essa guerra é completamente ilegal. As Nações Unidas não deram o aval à invasão do Iraque... E tudo isto porque nos transmitiram uma mensagem de medo. O medo do terrorismo, aqui, é um medo irracional, o medo de que algo ou alguém de fora poderá vir atacar-nos. No Reino Unido sempre tivemos terrorismo, mas um terrorismo «interno», do IRA. Sabemos bem o que isso é. Mas nunca tivemos um ataque terrorista vindo de fora [Nota: repete-se, esta entrevista foi dada dois meses antes dos atentados em Londres].

Passando à música - e voltaremos depois à «política» a propósito da vossa ópera sobre Khadafi... Neste álbum, vocês trabalharam com o produtor Ben Watkins (dos Juno Reactor e compositor das bandas-sonoras da série «Matrix»). O que é que ele trouxe de novo ao som da banda?

Ele ajudou-nos a voltar às origens e a um som mais verdadeiro, mais simples, onde as melodias pudessem tomar a dianteira. O destaque está nos MCs e nos cantores. A base é o drum'n'bass, o hip-hop e o reggae, mas as vozes é que estão lá em cima. Não há tanto ruído por baixo como em álbuns anteriores... Agora, se ele trouxe algo de novo ao nosso som ainda não sei dizer, porque tenho estado muito embrenhado no trabalho e ainda é tudo muito subjectivo. Se calhar só daqui por cinco anos é que vou poder dizer, quando ouvir o «Tank» outra vez, «oh sim, olha o que nós fizemos aqui!» (risos). Agora a sério, quando estivermos proximamente a preparar estas canções para o formato de concerto é que vamos perceber melhor o que temos no álbum.

Neste álbum também tiveram a colaboração constante do cantor reggae Ghetto Priest, que já tinha trabalhado convosco em 1996...

Acho que tudo isso está ligado. E sim, o Ghetto Priest está ligado à On-U Sound (editora/organização liderada por Adrian Sherwood) e esteve em digressão connosco por essa altura, mostrando o seu próprio trabalho e acabou por colaborar directamente connosco, depois, no tema «Fortress Europe», do álbum «Enemy of the Enemy». A sua voz soava muito bem connosco quando tocávamos com ele ao vivo, daí que a sua presença neste novo álbum seja perfeitamente natural. E ele, apesar de ser um cantor de reggae, adapta-se muito bem a todos os géneros que nós incluímos na nossa música.

Mas há agora mais reggee na vossa música...

Nós crescemos nos anos 80 e aprendemos a gostar do reggae dos anos 70, dos sound-systems... Isso, para nós, sempre foi uma grande influência. E com a presença dele na banda essa tendência acentuou-se. A canção «Tomorrow Begins Today» é a canção mais reggae de raiz que alguma vez fizemos.

Os Asian Dub Foundation estão a trabalhar numa ópera baseada na vida do Coronel Muamar Khadafi (o presidente da Líbia). Porquê uma ópera e porquê acerca de Khadafi?

Já viu o «Disney on Ice»? (risos)

Não; mas sei o que é.

Pois, pensámos fazer um espectáculo com tanques em cima do gelo, mas os tanques são demasiado pesados (risos). E a ópera é capaz de ser um formato mais apropriado para contar essa história. A ideia já tem alguns anos: fomos convidados pelo National Theatre para começar a preparar uma ópera acerca de Khadafi. A ópera só estará pronta no próximo ano e será, provavelmente, cantada em italiano.

A Líbia teve a Itália como potência colonizadora no passado...

Exacto. Essa é uma das razões; a outra é que as grandes óperas clássicas eram cantadas em italiano (risos).

Como é que vocês vêem o Coronel Khadafi? Como um herói? Um ditador? Apenas um homem?

Ditador, ele é de certeza. Mas a verdadeira questão não é essa... Vou dar um exemplo: vimos o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros sentar-se várias vezes com Saddam Hussein à mesma mesa e as declarações dele foram «que pessoa encantadora que é Saddam». Isto, enquanto Saddam bombardeava os curdos. E o Donald Rumsfeld a mesma coisa. O que eu quero dizer é que os ditadores desta zona do Globo tiveram, em alguma altura, o apoio das potências ocidentais: Inglaterra, Estados Unidos, França... As raízes do poder nesses países foram lançadas pelo Ocidente. E, por vezes, eles são amigos, outras vezes são inimigos. Khadafi é uma personagem fortíssima porque, apesar de ter estado isolado durante dezenas de anos, sobreviveu. Mas é claro que é um ditador. E estamos a tentar contar esta história no contexto de uma ópera... Mas ninguém me tira da ideia que o melhor era mesmo apresentarmos isto como um grande espectáculo no gelo: «Khadafi On Ice» e, na continuação, «Fidel Castro on Ice» (mais risos)... Se conhecer alguém que compre a ideia, eu vendo-a...

OK, vou tentar (risos)... Para além da ópera e do novo álbum, vocês ainda estão envolviddos noutros projectos...

Sim. Costumamos fazer a banda-sonora ao vivo de filmes como «O Ódio» (de Mathieu Kassovitz) ou «A Batalha de Alger» (de Gillo Pontecorvo) e também estamos envolvidos no projecto de um CD educativo. Está a acontecer tudo ao mesmo tempo.

Este post é dedicado aos meus amigos Daniel e Carlos e aos muçulmanos e judeus que querem a paz, nomeadamente nos sites:
http://www.isra-pal-peace.ch/Framepage_1.htm
http://www.taayush.org/
http://traubman.igc.org/global.htm
http://zope.gush-shalom.org/home/en
http://www.mideastweb.org/

3 comentários:

Postcards from Portugal disse...

É incrível como hoje se faz guerra, ainda por cima indiscriminada, por todas as razões erradas (se é que podem existir razões certas para a guerra...).

Obrigado por este belo texto. Principalmente porque começa na guerra e acaba na paz - e no que a música pode fazer por ela.

Quanto à foto do Público, é o que chamo de sintonia bloguista ;)

Anónimo disse...

António, és muito grande.

Mestre de palavras. :)

Ruidoempedernido disse...

Parabéns amigo, eu hei achado o teu blog hoje e é muito bom!!... Além disso, concordo com tudo o que escreveste dos ADF. Eu assistí ao show que eles tiveram em Rivas (Madrid) em Junho e foi incrível!!.

Pois, um grande abraço desde a Espanha.

PS, Eu também tenho um blog, mas eu nao estou trabalhando muito nele; "www.tende-dero.com"