26 agosto, 2006

Janelo da Costa - Os Kussondulola & A Pré-História do Reggae em Portugal


O reggae foi o primeiro exemplo de música fora da esfera anglo-saxónica a ter um sucesso global, partindo de Kingston, Jamaica, para conquistar o mundo. Antes, a bossa-nova brasileira, a rembetika grega (via «Zorba»), o fado (via Amália Rodrigues), o flamenco, o calipso (via Harry Belafonte), a música «exotica» de Martin Denny ou Yma Sumac, a música indiana (via Beatles e Ravi Shankar) e marroquina (via Brian Jones/Rolling Stones) estiveram quase lá, mas foi o reggae que se constituiu como primeira expressão de «world music» a saltar fronteiras com facilidade. Portugal, nos anos 70, também foi tocado pela magia do reggae. Mas a história desta música em Portugal ainda teria um longo caminho a percorrer até atingir o sucesso que tem hoje. Aqui ficam duas entrevistas com Janelo da Costa, mentor dos Kussondulola, a propósito da história (e pré-história) do reggae no nosso país e do último álbum da sua banda, «Guerrilheiro», e a crítica a este disco, em textos publicados no BLITZ em Abril deste ano.



REGGAE EM PORTUGAL
UMA HISTÓRIA TARDIA

Por muito estranho que pareça, o primeiro álbum de reggae feito em Portugal foi editado há apenas dez anos: «Tá-se Bem», dos Kussondulola. Estranho, porque as raízes da música já por cá estavam lançadas desde duas décadas antes. Janelo, a voz dos
Kussondulola, desfia as suas memórias.

Nos anos 70 – principalmente depois do 25 de Abril de 74 -, os discos de Bob Marley e Peter Tosh (principalmente destes dois) circulavam de mão em mão entre os portugueses mais dados às coisas da música. E eram passados em festas de garagem, em finais dessa década, a par do disco-sound, de grupos punk e new wave e de baladas xaroposas. E havia espaços que começavam nessa altura a dar uma maior visibilidade ao género: a discoteca Jamaica (o nome diz tudo), no Cais do Sodré, em Lisboa, e um programa de rádio, na então nascente Comercial, de Humberto Boto, exclusivamente dedicado ao reggae. Mas reflexos na música feita em Portugal havia muito poucos. E foi mais fácil detectar, no chamado boom do rock português, em inícios dos anos 80, influências do ska (via Madness, Specials ou até Police) do que do reggae em bandas portuguesas como os Táxi, Grupo de Baile ou Jáfumega.

Mas havia, já nessa altura, algo a nascer em termos musicais na direcção de uma cultura reggae nacional. E na semente estavam duas personagens que se tornariam fundamentais para a divulgação do género em Portugal: Janelo da Costa (que viria, muitos anos depois, a formar os Kussondulola) e Papa Paulo (radialista e o maior coleccionador português de discos de reggae, estimando-se a sua colecção em mais de 15 mil itens, principalmente em vinil). Nessa altura (início dos anos 80) a viver no Algarve, o angolano Janelo junta-se a Papa Paulo para criar um sound-system, KMAC, em que Papa Paulo passava os discos e Janelo espalhava as suas «riddims» por cima.
Diz Janelo que a diferença entre ele e a generalidade das pessoas que gostam de reggae, «foi que eu quis fazê-lo e não só ouvi-lo. E tive força para nunca desistir. Agarrei-me ao reggae a 100 por cento, mesmo em termos de rastafarianismo [a religião/filosofia do reggae]. E há outra coisa: quando em miúdo tocava música angolana, o merengue, a sua cadência é muito reggae. O primeiro disco de reggae que tive foi do Peter Tosh, oferecido pela minha mãe. E ela, ainda hoje, não gosta de reggae, só gosta do Peter Tosh. Quando vim para Portugal, vivi durante cinco ou seis anos com uma família jamaicana, de quem apanhei aquele espírito. E, no início dos anos 80, vi um grande concerto, na Festa d’O Avante, da primeira banda de reggae que veio tocar a Portugal: Clint Eastwood & General Saint, que tinham um grande sucesso».

Entretanto, Janelo vive durante algum tempo no Algarve (1979/1980), onde trava conhecimento e amizade com Papa Paulo, e data daí o nascimento do primeiro sound-system português, o KMAC: «Ele a passar os discos, eu a cantar por cima. E ainda hoje continuamos a fazer sound-systems. Ele é espantoso: dizemos o nome de um músico qualquer de reggae – seja guitarrista, seja baterista... - e ele sabe tudo sobre ele, quando nasceu, com quem tocou. O Papa Paulo deu-me um grande empurrão no sentido de começar a fazer reggae».

A primeira banda de Janelo chamava-se Rumde, que era o nome do guitarrista do grupo, Edmur, escrito ao contrário. «Ensaiávamos numa cave em Sto. António dos Cavaleiros. Entrámos num daqueles festivais de rock e ficámos em terceiro lugar. Éramos quase todos de Angola. Daí ficou uma canção que ainda hei-de editar, “Mama Nadi”». Os Kussondulola vêm depois, e têm esse nome porque é «mais africano. A minha mãe tinha um bar com esse nome, que também é o nome da minha bisavó. E a palavra engloba uma série de ideias: movimento, deslocação. E o grupo foi-se formando: o Daddy Bé, o Messias...». E os Kussondulola acabaram por ser a primeira banda de reggae em Portugal a chegar à edição de um álbum, «Tá-se Bem», e com bastante sucesso.

Nos últimos anos – e já com discos editados ou não – muitos grupos e artistas de reggae e ska nasceram em Portugal. Sem ser uma lista exaustiva, pode falar-se de Mercado Negro (fundado por Messias, ex-Kussondulola), One Love Family, Montecara, Souls of Fire, Prince Wadada, Sativa, Ja Vai, Legalize, One Sun Tribe e, com bastantes elementos de música jamaicana mas não só, Terrakota, Blasted Mechanism, Philharmonic Weed, Sloppy Joe, Primitive Reason, etc, etc... E, diz Janelo, «há também um veterano do reggae em Portugal de quem gosto muito, Pascoal Silva – com uma carreira tão longa quanto a dos Kussondulola -, cabo-verdiano, que tem um disco muito bom mas que passou ao lado de toda a gente». Janelo não enjeita o epíteto de «padrinho» do movimento: «Sim, sinto-me de certo modo responsável pelo aparecimento de muitos destes grupos. O primeiro disco dos Kussondulola foi um exemplo, até no sentido de podermos cantar esta música em português».

Hoje, o reggae está bem vivo em Portugal. Para além dos grupos e artistas, surgiram vários sound-systems – Yes Mi Selecta, Kintal do Dub, Fankambareggae, Dubadelic Sound System, Reggae Portugal Sound System, Mighty Sound System... -, há festas dedicadas ao género, muitos concertos de vedetas internacionais, sites na internet (como o importante reggaeportugal.com), produtoras especializadas (como a Positive Vibes) e espaço para festivais exclusivamente dedicados ao género. Segundo Janelo, «há cada vez mais gente que se identifica com a filosofia do reggae: paz, amor, boas energias, vibrações positivas».


KUSSONDULOLA
ALEGRES EMIGRANTES

Janelo da Costa, líder (nas suas palavras, «mentor») dos Kussondulola, fala do novo álbum, «Guerrilheiro», de Angola, da língua portuguesa, de cannabis e da sociedade que nos rodeia. A todos.

«Guerrilheiro» é mais um álbum dos Kussondulola e um álbum de reggae cantado em português...

Cantado em português, e isso é importante... Há muita gente que me pergunta: «porque é que não cantas em inglês?... Faz um hit em inglês ou uma versão do Bob Marley». Mas não, não faço. E é estranho porque muitos artistas portugueses cantam em inglês. Nas comunidades africanas, quando há festas – e nós fazemos festas a propósito de tudo -, há sempre música, temos sempre que ter um grande tijolo para ouvir o som, e 99 por cento da música que ouvimos é cantada em português. E as festas dos portugueses brancos têm só música cantada em inglês. Essa é capaz de ser uma das razões para a minha insistência em cantar en português.

Com tantas mensagens de paz que o álbum tem, porque é que se chama «Guerrilheiro»?

Somos guerrilheiros da paz (risos)... É uma referência à História de Angola, que está cheia de guerrilheiros. E também a uma canção do primeiro álbum dos Kussondulola, que se chamava «Guerrilheiro», que por sua vez é uma homenagem a um cantor clássico da música angolana, David Zé, que foi morto na guerra. E eu sinto-me um pouco guerrilheiro, mas um guerrilheiro-artista, com uma abordagem da política através da arte. E, ao fim deste tempo todo a divulgar o reggae, achámos que a nossa luta, dos Kussondulola, é uma luta de guerrilha. Assim como decidimos chamar à nossa digressão, a digressão do Mayombe, em homenagem à floresta angolana com esse nome – temos que vir da floresta falar às pessoas das cidades...

A cidade é a «Babilónia» e o Mayombe é a «Mãe-África»...

Exactamente! (risos)

Para este álbum foi convidada muita gente do universo do reggae em Portugal. E voltaram alguns músicos dos Kussondulola do início...

Desde o início que os Kussondulola são uma banda de «alegres emigrantes». No sentido em que há músicos que entram, saem, voltam a entrar, há muitos convidados que passam por cá (o álbum anterior estava cheio de convidados da pop...). Entrei agora numa fase em que quero ser produtor. E se eu estou a trabalhar com a Sara Tavares, quero no disco dela as melhores cantoras nos coros. E o melhor guitarrista... Nos Kussondulola é a mesma coisa: vou buscar os melhores músicos e cantores. Há uma entidade Kussondulola, mas não conseguimos sobreviver se pertencermos só a uma banda... E nós funcionamos mais como uma grande família, em que há os Kussondulola, os músicos de estúdio, os convidados...

Pode dizer-se que este é um álbum conceitual? Parece haver uma ligação, uma continuidade, nas letras, algumas delas versando a História de Angola...

Não acho que haja um conceito. Essas referências a Angola são inevitáveis. Tenho uma grande ligação à comunidade rasta angolana e sinto que tenho que fazer alguma coisa por Angola. E esta é uma forma de me empenhar nas questões angolanas. Por exemplo, falar da História de Angola à chavalada de lá, interessá-la pelo seu passado. E mostrar que, apesar das guerras e dos conflitos todos, no fim, o Bem vence sempre o Mal...

Essa tónica de esperança está presente em muitos poemas teus, quer nos outros álbuns quer neste - em que continuas a falar de política, paz, religião, ecologia, e, muitas vezes, disto tudo misturado no mesmo poema. Há uma razão para todos os males e uma solução global para todos eles?

É isso mesmo. A resposta só pode ser essa. E essa solução vem da religião rastafariana, sim, mas também de qualquer religião que esteja no caminho do Bem. Nós fomos dotados, na origem, com coisas mais viradas para o Bem. No meu caso, tive uma educação cristã e isso ficou muito enraizado em mim...

Podes esclarecer algumas palavras que usas neste álbum? Por exemplo, o que significa «dengue» (no tema «Dengue Foi Jah»)?

Significa «criança». Esse título significa que Jah está presente nas crianças.

E usas a palavra «bula», que significa «erva» (em «Legalizem a Bula»). Achas que a cannabis vai ser algum dia legalizada em Portugal?

Cada um tem o seu pensamento próprio sobre esse assunto. E nesta canção eu transmito o meu. Quis pôr as pessoas a navegar um bocado nesta letra...

Vocês metem música angolana pelo meio do reggae. Há aqui elementos de semba e merengue...

Esses elementos da música angolana são muito importantes porque são uma forma de identificação dos Kussondulola. E o nosso mercado passa muito por Portugal e Angola, mas também por Moçambique, Brasil, Guiné-Bissau... E essas sonoridades angolanas, essas fusões, dão-nos uma originalidade grande e, ao mesmo tempo, uma identificação com outros países lusófonos. A lusofonia é uma «mix» original e temos que fazer essas misturas com elementos daqui e dali, que nos dão tanta riqueza... No «Lua Luanda» começamos com música angolana e só depois é que vamos ao reggae...

De onde é que vem a canção «Poeta do Povo»? É repescada da Linha da Frente?

Sim, porque nós gravámos essa música para o álbum da Linha da Frente (projecto que juntava João Aguardela, Luís Varatojo, Viviane e Janelo, entre outros), mas acabou por não entrar no álbum. E aproveitei-a para o o álbum dos Kussondulola: acrescentei umas guitarras, um piano, mas a base vinha da Linha da Frente... A Linha da Frente era um projecto fantástico e tem que haver mais projectos destes, de união entre artistas de várias áreas. Nós não temos uma indústria musical e, se nós, artistas, não nos unirmos não vamos a lado nenhum... Por exemplo, um dos meus grandes desejos é que haja um festival de Verão, tão grande como os outros, mas só com música portuguesa e de expressão portuguesa: 50 bandas, todos os anos...


KUSSONDULOLA
«GUERRILHEIRO»
Zona Música

Janelo da Costa está há mais de 20 anos na linha da frente do reggae feito em Portugal – com sound-systems que agitaram o Algarve no início dos anos 80, com projectos de bandas que deram origem aos Kussondulola, a primeira banda reggae nacional a chegar ao formato álbum e ao reconhecimento popular. Das suas sementes nasceram muitos outros grupos e esse é apenas um dos seus méritos. O outro, de Janelo e dos Kussondulola, é lançar mais um álbum, este «Guerrilheiro», que soa a fresco e a novo (e é sabido como, muitas vezes, o reggae tende a repetir-se a si próprio). «Guerrilheiro» é reggae cantado em português (e com muitas palavras vindas de Angola, como «dengue» que significa «criança» ou «bula» que significa «erva»), com mensagens políticas, sociais, ecológicas, religiosas, pacifistas... e com um enquadramento musical riquíssimo. Porque, pelo meio do reggae, há dub, dancehall, desvios rock, funk e disco-sound (!), formas musicais angolanas como o merengue e, sempre, muito bem servidos por músicos fantásticos e alguns convidados que dão maior riqueza no jogo de vozes (Prince Wadada, Legalize, Melo D, Paulo Gonzo ou Viviane). (7/10)

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