06 novembro, 2007

Gaita Mirandesa - O Património Tem Que Ser Padronizado? (Parte II)

O texto que publiquei ontem no Raízes e Antenas provocou uma saudável discussão à volta da necessidade ou não de «padronizar» a gaita mirandesa. E, nesse sentido, hoje aqui fica publicado um texto de Jorge Lira - um dos principais mentores do projecto da chamada «padronização» - a rebater os meus argumentos e a esclarecer alguns pontos que permaneciam confusos. Texto que eu muito agradeço e que tenho a honra de publicar no Raízes e Antenas:

«Pareceu-me importante clarificar a poeira que em torno desta "padronização" se pretende eventualmente levantar. Saliento o seguinte: sendo eu alguém pessoalmente envolvido na Gaita Mirandesa – na autêntica, isto é, na "pré Galandum anos 90" e sobretudo "pré Associação Gaita de Foles após os anos 90", tendo tido a rara sorte e privilégio de poder conhecer os últimos gaiteiros, que aprenderam de rapazes antes da década de 50 do século passado, sei bem do que estou a falar.

Alguns dos actuais tidos como "velhos gaiteiros", designadamente, Sr. Ângelo Arribas de Picote e Sr. Aureliano Ribeiro, de Constantim, filho do Sr. Virgílio Cristal, meu grande amigo, iniciaram a aprendizagem e aprenderam a tocar a Gaita de Foles já depois de mim, e eu só tenho 40 anos! As primeiras palhetas do Sr. Aureliano Ribeiro, fui eu quem lhas fiz e dei e ensinei a fazer, tal como a mim houvera sido ensinado pelo Gaiteiro Tiu Joaquim de S. Joanico.

Por isso, sem mais alongamentos, se entenderá que falo de algo que para mim é orgânico. Tive essa imensa sorte.

Desde os anos 80 que o declínio era evidente.

As tentativas de Zé Preto+Galandum, anos 90, foram meritórias, mas iniciaram a desvirtuação do processo num sentido perigoso: com base em réplicas de uma réplica não rigorosa da Gaita de Alexandre Feio, e depois com base em afinações realizadas à vontade e gosto do meu grande amigo Paulo Preto (fomos colegas no Conservatório de Gaia, era ele o Mirandês mas era eu o Gueiteiro!) surgiram gaitas que em dois discos sequentes ("L’Prumeiro" e "Modas e Anzonas") fixaram para a posteridade uma sonoridade mais ou menos correcta em termos tímbricos, mas uma afinação desadequada à tradição. O que está escrito ou gravado tende a ser a verdade face ao que é imaterial, e isso começou-me a preocupar. Tudo isto feito com a melhor das intenções, e por grandes amigos que muito respeito, mas quiçá, irreversível.

Por outro lado, a Associação Gaita de Foles, também cheia de boas intenções, "inventa" uma gaita híbrida das tímbricas de Rodrigo Fernandes e das afinações… Sanabresas, da Gaita Sanabresa de Juan Prieto Ximeno. Aí as boas intenções começaram a encher o inferno a que o futuro duvidoso da verdadeira Gaita Mirandesa estaria votada se nada fosse feito. Tudo também cheio de magníficas vontades e gigantescas boas intenções, mas irreversível…

…É neste contexto, entendendo finalmente que era, por mero acaso, possuidor de um património de conhecimento sobre o assunto que seria relevante, que eu saio do meu "mutismo" (entenda-se, fase de investigação pessoal) de quase 20 anos e no final do L’Burro e L’Gueiteiro’2006 me junto com o Paulo Preto e lhe explico isto tudo. Esse homem que tenho a honra de ter por amigo, apesar da sua convicção na "sua" afinação mirandesa concordou em partir comigo para a aventura de um projecto de investigação em que esteve disposto a abdicar das suas pré-convicções (bem como eu das minhas) para obter conhecimento fundamentado e concreto: nada mais correcto do que ir às origens, do que ir em busca das (ainda) existentes, mas infelizmente, silenciadas ponteiras ancestrais. Como eu tinha acesso fácil a algumas (uma com 200 anos) e a outras, sabia onde as ir buscar, foi possível reunir a maior colecção de ponteiras mirandesas antigas e… analisar sistematicamente. Nunca havia sido feito: tal como é costume, um ou outro tinha trabalhado sobre UMA ponteira, assumindo-a como sua e ficado em redor desse "umbigo".

Os resultados foram surpreendentes: mitos caíram por terra: não só identificamos instrumentos seculares com evidentes provas de terem sido realizados pelo mesmo cosntrutor, como a maior parte desses instrumentos quando submetido a um teste de afinação em concreto e com variáveis definidas – por exemplo, A MESMA palheta, tende para uma mesma escala com divergências muito, muito pequenas.

Algumas afinam em uníssono. Eu e o Paulo Meirinhos estivemos a tocar em uníssono com duas ponteiras "históricas": a ponteira Paulino Pereira e a Ponteira Museu da Terra de Miranda 1. Não era novidade para mim: já em 1988 havia comprado ao Tiu Rodrigo uma que afinava tal e qual com a ponteira do meu velho mestre: e antes de a comprar levei-a a S. Joanico onde ele me disse "Yesta, La pudes cumprar, qué de las buonas" – ou seja, afinava pela dele… e com palhetas feitas artesanalmente, então…

A Padronização veio permitir dar luz e voz a instrumentos genuínos que estavam calados nas arcas das viúvas, dos herdeiros ou das prateleiras dos museus, e que a ponteira padronizada não é mais do que a afinação tendencial de todas as ponteiras identificadas, segundo o modelo unanimemente entendido como a melhor de todas, ou seja, a ponteira Paulino Pereira. Assim um pouco como aconteceu em Sanábria com a do Júlio Prada. Mas a padronização prevê duas vias de evolução com outras escalas alternativas e existentes no planalto, ou seja, não é uma redução, é um projecto plural e de evolução, a partir antes de mais da preservação absoluta de algo que estava em desaparecimento, que seria a verdadeira escala mirandesa, e não as suas reinvenções dos anos 90.

Assim sendo, creio poder afirmar sem sombra de dúvidas que a Padronização realizada antes de mais é um projecto de diversidade e de preservação cultural, e que outras leituras enviesadas apenas se podem fundamentar no desconhecimento do projecto ou na sua errada interpretação. Sei que o Termo "Padronização" é perigoso desse ponto de vista pois potencia essas leituras superficiais, mas na realidade não ocorre outro melhor…

Jorge Lira»

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