04 agosto, 2009

Lura, Mayra Andrade e Sara Tavares - Cabo Verde É Mais Feminino!


Há alguns meses, na «Time Out Lisboa», publiquei as minhas impressões sobre os novos álbuns de três cantoras da nova geração cabo-verdiana: Lura (na foto, de Ernest Collins), Mayra Andrade - sobre a qual faço aqui um pastiche de dois textos sobre o disco - e Sara Tavares. Uma geração d'ouro!

Quando a Morabeza Rima Mais Com Beleza

De uma vez só, são editados quase ao mesmo tempo os novos álbuns das três mais importantes novas cantoras cabo-verdianas: Lura, Sara Tavares e Mayra Andrade. António Pires ouviu-os.

Durante muitos anos - a bem dizer, cerca de três décadas (as de 70, 80 e 90 do Séc. XX) - as maiores embaixadoras da música cabo-verdiana foram Cesária Évora, Titina, Celina Pereira, Ana Firmino, Herminia e Teté Alhinho (nos Simentera ou a solo), sem desprimor para as que não cito aqui. Todas elas com uma obra discográfica extraordinária, principalmente se pensarmos que todas elas são de um país pobre, africano, periférico e insular. E se pensarmos, igualmente, que o fenómeno e o alargamento do circuito da chamada world music só aconteceu dez ou vinte anos depois de terem começado a sua carreira. Talvez por isso, só Cesária Évora apanhou esse apetecido comboio da world music e tornou-se, por direito e talento próprios, uma das grandes divas desse circuito, alargando o caminho para quem veio a seguir.

Agora, abertas que estão desde há muito as portas do mundo à música cabo-verdiana, três novas cantoras têm emergido - e também com inteira justiça - nesse mundo imenso das "músicas do mundo": Lura, Sara Tavares e Mayra Andrade, que têm em comum com as da geração anterior o mesmo amor pela música de raiz cabo-verdiana mas, em todas elas, outros amores com vista para outras músicas.

Comecemos por Lura: iniciando a sua carreira com uma ligação óbvia a Cabo Verde mas também fortemente seduzida por géneros norte-americanos, Lura acertou em cheio com o caminho a seguir nos álbuns "Di Korpu Ku Alma" e "M'bem di Fora", onde pegou em géneros tradicionais cabo-verdianos para os unir com consistência a géneros exteriores. No novo disco, "Eclipse" (Lusáfrica/Tumbao; *****), Lura continua a mesma via mas com uma consistência e coerência ainda maiores. Interpretando temas de compositores como Mário Lúcio, Toy Vieira, Orlando Pantera, B.Leza ou Valdemiro Ferreira, a cantora tem neste álbum momentos absolutamente fabulosos como o festivo batuque de "Tabanka", a morna (enfeitada, e tão bem!, com guitarra portuguesa) "Eclipse", "Maria" (com uma guitarra eléctrica deliciosa que vai ao zouk, ao highlife e à marrabenta) ou o surpreendente electro-tango de "Canta Um Tango". É o melhor disco deste lote.

A seguir, Sara Tavares: outro exemplo de uma cantora, e neste caso compositora, que se aproximou gradualmente da música das suas raízes, Sara Tavares chega a "Xinti" (World Connection/Megamúsica, ****) com um léxico musical e lírico perfeitamente apurado e em que a sua paixão pelo gospel, soul, funk ou reggae - e a sua aproximação aos géneros cabo-verdianos - está agora tão personalizada que já não se reconhece facilmente o que está na base de cada uma das suas canções. São canções dela, só dela; e isso é bom. Acompanhada por uma equipa de luxo (no disco estão João Paulo Esteves da Silva, Boy Gê Mendes, Rão Kyao, Jon Luz, N'du, Ciro Bertini, José Salgueiro...), Sara Tavares não tem em "Xinti" momentos pontualmente tão brilhantes quanto em "Balancê" mas tem aqui o seu pico de coerência artística e autoral.

Finalmente, refira-se que Mayra Andrade conseguiu, em "Stória, Stória" (Sony Music; ****), superar a difícil etapa do segundo álbum - e mais difícil ainda para quem tem um primeiro álbum absolutamente brilhante! - e voltar a surpreender. Há alguns álbuns de estreia que valem por uma carreira inteira. "Navega", o primeiro álbum da cantora (e compositora) cabo-verdiana Mayra Andrade, é um desses raros exemplos. E, de tão perfeito que é, quase que se desejaria que ela nunca gravasse mais nada e ficasse para sempre agarrada a essas canções, as maravilhosas canções de "Navega". Mas não; depois do merecido sucesso do primeiro álbum, a jovem Mayra lançou-se ao mundo e deu concertos em todo o lado, ganhou prémios e galardões, foi aplaudida pela melhor crítica de world music. E, agora, edita o seu segundo álbum, "Stória, Stória", prova de fogo em que passa mais uma vez com distinção: faltam lá canções de Orlando Pantera - que deram a "Navega" uma outra dimensão - mas estão lá várias canções compostas por Mayra, a revelação na escrita de canções que é Celina da Piedade (ex-Uxu Kalhus, Cinema Ensemble...), Mário Lúcio, Djoy Amado, o israelita Idan Raichel... e a produção de Alê Siqueira, arranjos de Jaques Morelenbaum, canções que remetem para valsas parisienses e o son cubano, mornas e bossinhas-novinhas, jazz e coladeiras, sambas e batuques, festa única e exemplar de muitas músicas que, se calhar, foram criadas para serem assim, um dia, misturadas. Com a voz de Mayra, uma voz rara e preciosa, a coroar todas as canções.

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