30 janeiro, 2012

Colectânea de Textos no jornal "i" - XXVII


Carecas, dreadlocks e carapinhas...

Há muitos anos, a televisão portuguesa (que nessa altura se resumia à RTP) passava o famoso anúncio do Restaurador Olex: "Um branco de carapinha e um preto de cabeleira loira não fica bem nem é natural". Mensagem devedora de um país fechado e obscurantista, onde a ditadura, o colonialismo e o racismo deixavam a sua marca até na publicidade dirigida aos homens que ficavam com cabelos brancos - e, veja-se só a ironia, no caso dos cabelos... os pretos eram melhores e mais saudáveis que os brancos! -, a verdade é que ainda hoje muita gente recorda a frase e a repete nas mais variadas situações. Isto vem a propósito de três discos recentes de malta branca, portuguesa, toda com nomes estrangeirados e uma música deveras cafrealizada. E, ainda por cima, três excelentes discos que merecem toda a atenção e carinho. Primeiro, "Hats & Chairs", dos Soaked Lamb (tradução livre: Ensopado de Borrego), um magnífico álbum de blues do mais negro que há, mas também com as doses certas de country, folk, jazz, surpresa e divertimento para que não seja apenas mais um mero (embora magnífico) disco de blues. Depois, a surpresa que é o EP de estreia e homónimo de Frankie Chavez (na foto), um homem de belíssima voz (entre Paul McCartney e John Lennon, ou vice-versa), mas cujas influências maiores são também Ben Harper e Jimi Hendrix. E, por último, "Seek Your Truth", de Freddy Locks, cada vez mais fiel às raízes do reggae e às suas mensagens. E, como se sabe, no reggae isso é sempre o mais importante.


Há (muita) música portuguesa nas rádios

A Lei da Rádio, que impôs a obrigatoriedade de uma percentagem considerável de música portuguesa nas rádios nacionais - e locais e regionais -, apesar de na sua base estar uma permissa contestável, tem de facto contribuído para uma muito maior divulgação de música nacional, muitas vezes nova e de, voltamos a repeti-lo, também muitas vezes de inegável qualidade. E isso é bom, principalmente quando é uma realidade, desde há muitos anos e devido à "ditadura" das playlists, o descréscimo do número de programas de autor dedicados à música portuguesa. Mas ainda os há, desde o incontornável "Portugália" (Antena 3), de Henrique Amaro, até a programas de rádios universitárias - "Santos da Casa" (RUC), de Fausto da Silva e Nuno Ávila; "Português Suave" (RUM), de José Reis; "H(À) Escuta"(RUA), de Leila Leiras... - ou o "Portugal Rebelde", de António Manuel Almeida, que é transmitido pela Douro FM. Um programa que lançou agora uma excelente colectânea homónima que toma o pulso a muita da música portuguesa actual e é um espelho perfeito de como a nossa música, em 2010 (ou só um bocadinho antes), está a viver um ano de ouro! Em "Portugal Rebelde", o disco, ouve-se um novo tema dos veteranos Trabalhadores do Comércio mas tudo o resto é de grupos e artistas bastante recentes, muitos deles a cantar em português - Diabo na Cruz, Os Golpes, Os Tornados, Márcia (na foto), Ludo, Feromona - e também, e muito bem, em inglês - A Jigsaw, Minta, Noiserv, Partisan Seed - ou, no caso do instrumental de M-Pex, a levar a guitarra portuguesa e o fado para um futuro radioso. Edição feita fora das esferas habituais da indústria discográfica - majors ou independentes - e com o apoio de estruturas locais, este é mais um belo exemplo de amor à música portuguesa e a quem a faz. Devia haver mais discos assim.




Músicos de sete ofícios

Este ano só comprei dois livros na Feira do Livro: "Diário da Bicicleta", de David Byrne, e "As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizza Boy", novela gráfica com argumento de Filipe Melo (na foto). Ainda estive para comprar um terceiro, "Os Livros Que Devoraram o Meu Pai", de Afonso Cruz, mas havia tanta gente na área da Leya que adiei a aquisição para um futuro breve. E só depois reparei numa coincidência curiosa: todos estes livros têm músicos como autores. E músicos que não são só músicos e escritores: Byrne - formado numa escola de artes, no que foi e é uma tradição de muito rock anglo-saxónico (os seus Talking Heads, assim como os Doors, Velvet Underground, Pink Floyd ou Roxy Music saíram de escolas de design, artes plásticas ou cinema) - é também escritor, fotógrafo, realizador de cinema, editor... E, de regresso aos outros dois casos, Filipe Melo é pianista de jazz, realizador de cinema ("I'll See You In My Dreams", "Um Mundo Catita") e professor; enquanto Afonso Cruz é guitarrista dos Soaked Lamb, escritor, ilustrador e realizador de filmes de animação. Mas não estão sós como "novos homens do renascimento e músicos dos sete ofícios" na música portuguesa: relembre-se o caso do artista plástico João Paulo Feliciano, agora a tocar no Real Combo Lisbonense, que financiou a gravação do álbum dos Tina & Top Ten com o dinheiro de uma exposição sua no CCB (o disco era a banda-sonora da exposição). E outros: David Fonseca (também fotógrafo e realizador de clips), Tó Trips (dos Dead Combo; designer) ou Manuel João Vieira (cantor, pintor, actor e candidato à Presidência da República).




As guitarras portuguesas que se abrem ao mundo

O que é que une o jovem, mas já carismático, intérprete de guitarra portuguesa Ricardo Parreira, o novo grupo de "world music made in Portugal" Atma (na foto a capa do álbum de estreia) e os imediatamente bi-consagrados Deolinda? Passe a frase feita, aparentemente nada. Mas, ouvindo-se os três recentíssimos álbuns destes artistas, há muito mais a uni-los do que a separá-los. Vamos por partes... Parreira, depois de "Nas Veias de Uma Guitarra", um álbum em parceria com o mítico Fernando Alvim (o "viola" que acompanhou Carlos Paredes) em que homenageava mestres da guitarra portuguesa como Carlos Paredes, Artur Paredes ou Armandinho, editou agora um lindíssimo disco em que liberta a guitarra portuguesa dos jugos do fado e em que, muitas vezes, vai em busca de uma música tradicional rural - corridinhos, saias, romances, viras, um tema da Galiza... - em que a guitarra dialoga, emocionalmente, com outros instrumentos e outras vozes. O álbum chama-se "Cancionário" e é já um dos melhores deste ano. Os Atma, se bem que sem a mesma centelha de génio, vão ainda mais longe geograficamente no álbum "Com a Mesma Alma", e unem uma guitarra portuguesa quase ominipresente ao fado mas também à África moura e à África negra, às Índias orientais e ocidentais, ao flamenco e a outras topologias ciganas... E, finalmente, os Deolinda - sem guitarra portuguesa mesmo que ela se consiga imaginar lá muitas vezes, por entre as filigranas das outras cordas - assinam um segundo álbum, "Dois Selos e Um Carimbo", em que mais uma vez a música portuguesa (seja dos fados, das marchas ou do.... "Bellevue" dos GNR) abraça o mundo.

(Textos publicados no jornal "i" em Maio de 2010)

3 comentários:

Anónimo disse...

Gostei muito professor!
Bjs.

Filipe Luna disse...

Como é que eu posso obter este álbum? Estou farto de dar voltas e voltas. PF ajude-me

António Pires disse...

Olá Filipe!

Mas qual deles? Falo aqui de vários!

Um abraço!